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Mariano Horenstein - Em que ponto você está?

Entrevista publicada (em espanhol) no Intervalo Analítico nº6 de 2017


Psicanalista. Membro Titular em Função Didática da Asociación Psicoanalítica de Córdoba. Dirigiu a revista Docta e foi editor de Calibán – Revista Latino-Americana de Psicanálise. Recebeu os prêmios:M. Bergwerk, Luicien Freud e Elise M. Hayman Award for the study of the Holocaust and Genocide.


Em que ponto você está?

Espero não estar, no momento em que esta entrevista for lida, no mesmo ponto em que estou enquanto a respondo. Estou interessado na ideia de viagem, tanto em relação à vida quanto à psicanálise. Se estou em um ponto, trata-se de um ponto no meio de um percurso. Viajar é um antídoto perfeito para as enfermidades profissionais do analista, viajar permite tornar-se estrangeiro, fazer-se vulnerável e receptivo. Estou interessado no lugar do viajante, que é diferente do de um simples turista e também daquele que se desloca para colonizar ou conquistar. Isso me interessa agora, viajar: pelos discursos, pelas geografias.


Ao participar da criação de calibán, revista latino-americana de psicanálise da fepal, imaginamos que tenha concretizado mais do que um projeto editorial de sucesso com 10 edições ao longo de 6 anos. Foi a realização de um sonho? Poder reunir a psicanálise desse nosso lado do equador num mesmo espaço/tempo/línguas?

Trabalhei com editor durante 14 anos e, nas duas publicações que dirigi, coloquei em jogo muito do meu desejo. Mas se há um sonho realizado - à maneira como se realizam os desejos nos sonhos - mais do que haver participado na criação dessa publicações - afinal de contas, sempre um assunto narcisista - é vê-las crescer sem mim. Agrada-me ver esse projetos editoriais andando a cargo de outros - muito deles inestimáveis amigos cariocas sem os quais Calibán não seria o que é - cada um contribuindo com sua diferença. E não sendo eu o único a liderá-los, isso me orgulha de verdade.

Calibán é um ponto de encontro dos psicanalistas latino-americanos, de nossas geografias e línguas. Mas encontro também no sentido que tem essa palavra em psicanálise, de onde sempre remete a um desencontro, a um desajuste estrutural, uma diferença irredutível. Calibán é um ponto de encontro, mas também um espaço onde se tornam evidentes as diferenças de nossa comunidade psicanalítica para pensar nossa prática. E estas diferenças devem ser respeitadas e postas a trabalhar.


Por falar em sonhos...” O sonho nosso de cada dia” é sem duvida uma expressão estética, a mais expressiva, do inconsciente. Seria por aí (trilhando sonhos) que analistas e artistas se “encontram” e se “assemelham” nas suas produções artísticas e analíticas? Ou dizendo de outra forma:


A coluna vem entrevistando os vários campos das artes e é por isso que queremos encerrar o ano com a psicanálise.... O que acha dessa inclusão da psicanálise no campo das artes?

Os artistas não somente vão à frente dos psicanalistas como chegam mais longe que nós. Suportam - os verdadeiros artistas - o encontro com um matéria incandescente, com algo a mesmo tempo real e insuportável, e também verdadeiro e imprescindível. E pagam um preço por isso. Acredito que os artistas são o que há de mais desenvolvido na espécie humana. E seria tolo para um analista - que trabalha também com o mais verdadeiro da subjetividade - renunciar às descobertas desse exploradores do abismo.

Freud e Lacan ambicionaram um estatuto científico para a psicanálise. Ambos reconheceram seu caráter particular, alheio aos padrões habituais do que se entende por ciência. Uma ciência do particular não é um modo de todo ruim de definir nossa prática, mas ao mesmo tempo é um oxímoro, pois a ciência precisa de generalizações. Entendo que a psicanálise tem muitos pontos de encontro com a arte contemporânea, algumas de suas marcas - a qualidade de estrangeiro e anacronismo, a extraterritorialidade e a singularidade, a mestiçagem e a narratividade, etc. - são compartilhadas. Mas um psicanalista não é um artista, não corre os mesmos riscos, senão outros. Em todo caso, nossa prática tem muito de artesanal e alguém poderia pensar o artesanato como algo menor. Não me desagradaria em nada que a psicanálise estivesse no campo das artes, mas a nossa também é uma profissão burguesa, na tradição das artes liberais, e isso - entre outras coisas - nos torna diferentes. No entanto, a interlocução com a arte contemporânea, com a literatura, com discursos distantes e ao mesmo tempo próximos do nosso, funcionam - para mim ao menos - como antídoto contra a apatia do pensamento que o exercício de toda profissão traz.


Você chegou a dizer em uma de suas conferencias que os analistas tinham muito o que aprender com a arte contemporânea. De fato a revista oferece grande espaço para entrevistas e obras de artistas. Desenvolva o seu pensamento para nós…

A psicanálise implica um movimento paradoxal: por um lado, implica uma extrema especificidade em suas leituras teóricas e na clínica que produz. Ao mesmo tempo, essa singularidade se complementa com uma abertura a outros campos, como a ciência ou a literatura, a filosofia ou o saber popular, a religião ou a política. Nesse movimento paradoxal de abertura e fechamento, de mestiçagem e precisão, concentra-se a potência da psicanálise. Acredito que os desenvolvimentos psicanalíticos demasiadamente centrados em si mesmos acabam em repetição e entropia. A não ser que apareçam autores como Lacan ou Bion, subvertendo tudo. Mas não é casual que esse autores se baseiem em discursos exteriores ao nosso para formular suas teorias… Nossa disciplina - como toda profissão - é conservadora; a arte, ao contrário, assume riscos e valoriza as vanguardas. Ver arte, escutar os artistas, nos leva mais longe e também com maior economia de recursos: anos atrás, recém-chegado de um congresso onde os analistas latino-americanos debatíamos arduamente sobre realidades e ficções, vi aqui uma mostra na Casa Daros. Ali estava dito tudo, de um modo mais potente e ao mesmo tempo mais decantado e permeável, fértil. Ao falarmos do que (ainda) não sabemos, os artistas nos levam a um terreno inexplorado, onde aparecem não apenas respostas, mas sobretudo novas perguntas.


Sabemos que as revistas de cultura psicanalíticas tem por objetivo a difusão da psicanálise. Não visam obter lucro financeiro, porém sempre enfrentam resistência institucional, “verdad”?

Não me agrada diferenciar - em psicanálise - entre revistas científicas e de cultura. Acredito que considerar a “cultura" como decorativa, uma extensão de uma psicanálise que encontraria em outras publicações, “científicas”, o espaço adequado à sua discussão pura e dura, não faz justiça à disciplina particular que praticamos. Muitas vezes há mais material para discutir cientificamente ao nos apartarmos de bibliografias especializadas e afiliações a um determinado autor ou escola, quando nos aproximamos das fronteiras do nosso campo. Calibán é um modelo de publicação que procura resolver, tomara que a alcance, essa aparente contradição entre dois tipos de publicações, que concerne à história do movimento psicanalítico desde sua origem.

Uma revista, para valer o esforço coletivo que implica editá-la, deve produzir movimentos. Se não há resistências - o sabemos desde Freud - é porque não tocamos em nada importante. Uma revista como Calibán, creio, pretende ir além de nossa limitações, além de nosso consensos e comodidades, além de nossos ideias institucionais. Nem sempre consegue, mas ao menos tenta. Claro que isso gera residências e está bem que seja assim. Acredito que, assim como um análise, quando se questionam em demasia aspectos como os econômicos, há que se buscar o outro lado das reais motivações, os pontos que são tocados por uma revista atípica em uma comunidade analítica bastante conservadora. As principais resistências, penso, são ideológicas e ligadas ao modo como a psicanálise é pensada, bem como sua clínica, suas teorias e instituições. Em todo caso, Calibán e outros projetos editorias seguem existindo no seio das mesma instituições que resistem a eles. E isso diz algo positivo de nossas sociedades; isso não é comum de se ver em outras instituições analíticas: somos muito mais tolerantes até mesmo diante daquilo que nos interroga.



Pode contar sobre o livro que está escrevendo? E o livro lançado em 2015, Psicoanálisis en lengua menor?

Tendo me afastado da gestão editorial, recuperei um tempo que me permite retomar projetos de escrita. No início do ano que vem, um livro chamado “The compass and the couch” será publicado em inglês. Terminei também um livro sobre jovens, particularmente em sua relação com o risco, e trabalho num livro sobre interpretação psicanalítica. “Psicoanálisis en lengua menor” é um livro que reúne algumas conferências que proferi, cujas interlocuções com analistas, artistas e intelectuais em várias cidades latino-americanas muito contribuíram com meu trabalho. É uma espécie de blog onde estão presentes muito de meus interesses e, ao mesmo tempo, uma pedreira da qual procuro extrair algo substancial para outros projetos.



Em que ponto está a psicanálise nos tempos atuais? Como enfrentar os desafios da clínica e da cultura?

Mais de um século depois, a diversidade teórica e as extensões da clínica são notáveis. Ao mesmo tempo, o espaço clínico e público se encontra em disputa. Não somente entre psicanalistas e outras correntes que desconhecem o sujeito tal como o concebemos, mas entre diferentes instituições psicanalíticas, com estilos e estratégia diferentes. Não acredito que - na América Latina pelo menos - haja menos interesse na psicanálise, como dizem, mas que esse interesse é disputado por mais jogadores, numa época que muda vertiginosamente. O destino das transferências é o que conta. E este tempo pode ser um ponto de virada para a psicanálise e o que fazemos - ou não - psicanalistas e instituições incluídos, será decisivo: ou nos enfraquecemos e envelhecemos recordando velhas glórias, em um narcisismo autocomplacente, ou nos colocamos realmente à altura desta época, aproveitando a potência de nossa clínica que, ainda que anacrônica - ou por isso mesmo - tem muito a dizer hoje em dia.


Todos os números do Intervalo Analítico estão disponíveis na página http://www.sbprj.org.br/intervalo-analitico-para-todos


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